29 maio 2012

O Brincar


Ao iniciar as reflexões sobre o ato de brincar, devemos enfocar as palavras do estudioso Eugenio Tadeu Pereira que o faz de forma muito detalhada ao relatar uma experiência sua, em que evidencia a naturalidade do brincar.
Fazia calor. O ônibus chacoalhava e ‘barulhava’. Uns amigos e eu voltávamos de um passeio no parque Xochimilco, na Cidade do México. Nossas mãos estavam abarrotadas de brinquedos que compramos nas pequenas lojas de artesanato. Éramos curiosos e pesquisadores do brinquedo. Comigo também estava um cavalinho de pau. No ônibus, à minha frente, do lado direito, uma criança, miúda e morena, no colo da mãe me espiava fortuitamente com um olhar sério. Olhei-a, pisquei os olhos, fiz ligeiras e tênues caretas. Ela continuava do mesmo jeito. Lembrei-me, então, do cavalinho em minhas mãos. Ao som de ‘toc toc, toc toc, toc toc...’, aproximava e afastava o cavalinho da criança. Às vezes, escondia-o atrás do banco. Os olhos do menino começaram, aos poucos, a mostrar um brilho diferente e, nesse embalo, pude vê-lo abrindo o rosto, sorrindo e aceitando o convite para a brincadeira. Entrara no jogo, ora se escondendo no colo da mãe, ora reaparecendo, chamando o cavalinho e olhando para mim. Aos poucos, dos tímidos sorrisos, passou a deliciosas gargalhadas. Na esfera do imaginário, naquele pequeno universo de relação, dois seres se encontraram por intermédio de um brinquedo. Por uns quinze minutos ficamos mergulhados nesse diálogo simbólico (PEREIRA, 2009, p. 17)
O autor (2009) complementa seu relato afirmando que durante esse encontro não houve falas, apenas movimentos e gestos sonoros, que sinalizavam a intencionalidade daquele momento – um adulto e uma criança, dois seres de universos diferentes com uma linguagem explícita além das palavras, linguagem esta que transcorre por toda a experiência de vida. Para eler, o brincar é um ato de descobertas, indagações, escolhas e recriações, é uma das formas mais ricas que a criança possui para se relacionar com o mundo, apreendê-lo e compreendê-lo, enfim, para se expressar.
Nessa perspectiva, Vorcaro (2006) destaca que o brincar é a prática da linguagem na íntegra, pois a criança produz um discurso lúdico e motor ao qual incorpora sentidos e lugares, muito antes de completar sua aquisição de linguagem ou, até mesmo, antes de falar seu próprio nome. Valorizando a expressividade do brincar, Pereira (2009) salienta a diferença entre o brincar como forma de expressão e o brincar como ferramenta. Ao se utilizar o ato apenas como ferramenta há privação de possibilidades para a criança, enquanto, se utilizado como forma de expressão, oportuniza-se à criança o exercício de reelaborar uma dada realidade com novos significados, formando sua identidade e tornando-a presente no mundo com sua individualidade e como participante de um grupo social.
Vieira, Carvalho e Martins (2009), na tentativa de definir o brincar, transcorrem, em contextos diferentes, sobre essa ação, desde “a brincadeira de um cachorrinho que corre atrás da bola, até aquela na qual experientes jogadores de xadrez disputam uma partida” (p.30), e em termos utilizados como sinônimos – brincar, jogar, brincadeira, atividade lúdica.
Brougère (1998), citado por  Wajskop (1995), afirma que o termo jogo possui três diferentes possibilidades de significados: situação de jogo de competição entre pessoas (por exemplo, o futebol), atividades ou jogos com regras (amarelinha, por exemplo) e ainda, como material que compõe um jogo. Conforme Wajskop (1995), numa perspectiva sociocultural, o brincar pode ser definido como uma forma de a criança interpretar e assimilar o mundo, os objetos, a cultura, as relações e os laços afetivos. Seguindo com raciocínio da mesma autora, o brincar é uma atividade social infantil, na qual a criança pensa e vivencia situações novas ou cotidianas, isenta de pressões situacionais.
Piaget (1971) classifica o ato de jogar em exercício, símbolos e regras, baseando-se nas três fases de desenvolvimento cognitivo. O exercício é representado pela repetição de gestos simples, atividades exploratórias e movimentos do próprio corpo – jogos de exercício sensório-motor. A fase do simbólico compreende a faixa entre dois e seis anos, quando a tendência da criança é a ficção ou fantasia. O jogo de regras inicia-se por volta dos cinco anos, mas se desenvolve na fase entre sete e doze anos, mantendo-se por toda a vida do ser humano. Ele se caracteriza pelo uso sistemático de regras estabelecidas pelo grupo.
Vygotsky (2007) aponta ganhos sociais, cognitivos e afetivos para a criança que exerce o brincar, afirmando que a brincadeira oportuniza a chamada zona de desenvolvimento proximal no desenvolvimento infantil. A zona de desenvolvimento proximal é a denominação dada por Vygotsky para a distância entre o nível de desenvolvimento atual e o nível de desenvolvimento potencial. O nível de desenvolvimento atual pode ser exemplificado como a capacidade de resolver um problema de forma independente, enquanto o nível de desenvolvimento potencial, pela resolução de um problema com o auxílio de um interlocutor mais experiente.
Para Vygotsky (2007), o brincar não é apenas uma fonte de prazer à criança, até porque algumas brincadeiras, como jogos e competições, causam desprazer e até sofrimento a elas. O ato de brincar é também interação e propicia a construção de aprendizagem através da troca mútua e da evolução imaginária da criança.
Definir o brinquedo como uma atividade que dá prazer à criança é incorreto por duas razões. Primeiro, muitas atividades dão à criança experiências de prazer muito mais intensas do que o brinquedo, como, por exemplo, chupar chupeta, mesmo que a criança não se sacie. E, segundo, existem jogos nos quais a própria atividade não é agradável, como, por exemplo, predominantemente no fim da idade pré-escolar, jogos só dão prazer à criança se ela considera o resultado interessante (VYGOTSKY, 2007, p. 107).
Na perspectiva Vygotskyana, o ato de brincar não é natural e sim socialmente construído, evidenciando o valor fundamental das vivências sociais e culturais relacionadas à aprendizagem.
A situação imaginária de qualquer forma de brinquedo já contém regras de comportamento, embora possa não ser um jogo com regras formais estabelecidas a priori. A criança imagina-se como mãe e a boneca como criança e, dessa forma, deve obedecer às regras do comportamento maternal (VYGOTSKY, 2007, p. 110).
Durante a brincadeira, as crianças podem vivenciar desafios que extrapolam seu cotidiano natural, possibilitando, assim, a criação de hipótese na ânsia de entender ou resolver os problemas propostos. Ao brincar em grupo, as crianças podem construir laços reais entre si e, ao mesmo tempo, elaborar regras de organização e de convivência, o que transforma a brincadeira em um privilegiado local de interação e conflito de distintas crianças e suas diferentes opiniões (MOYLES, 2002; WAJSKOP, 1995).
Às vezes, o brincar de faz de conta, especialmente envolvendo o uso da linguagem para explorar os conceitos e imagens criados dentro da criança, pode ajudá-la a aprender alguma coisa sem experienciá-la por si mesma, por exemplo, que o fogo queima. Transformar a casinha na Casa dos Três Ursinhos pode ajudar as crianças a sentir como é estar assustado e sozinho, e proporciona ricas oportunidades de linguagem comparativa (MOYLES, 2002, p. 62).
Wajskop (1995) estabeleceu características do brincar assim  evidenciadas:
·               Enredo ou situação imaginária - as crianças brincam, interagem e se comunicam a partir de um enredo ou situação imaginária, identificados através de verbalizações ou sinais e gestos corporais relacionados à brincadeira.
·               Fantasia e representação de papéis – atribuem a si próprias e aos outros, inclusive bonecos ou objetos, representações diversas como se fossem um adulto, um animal, etc.
·               Simbolismo – substituem objetos atribuindo-lhes significados diferentes do convencional.
·               Regras – elaboram normas presentes e respeitadas em toda a brincadeira.
·               Interação e negociação – a interação permite a negociação, a qual possibilita atribuições de significados às ações, aos objetos e aos personagens que participam da brincadeira.
·               Decisões – o que, onde, com o que, com quem e por quanto tempo são as decisões que as crianças fazem no momento do brincar.
·               Desprovimento – não há finalidades e objetivos explícitos
Finnie (1980) refere que o ato de brincar propicia à criança o conhecimento de si própria e do mundo que a rodeia. Ele faz parte do processo natural de desenvolvimento, pois é brincando que a criança, por exemplo, descobre suas mãos e aprende a utilizá-las, é brincando que a criança experiencia outras partes do seu corpo, distingue diferenças entre formas e texturas de objetos levando-os à boca e manipulando-os. Ao se deslocar de um lado para o outro, engatinhando, por exemplo, a criança adquire noções de distância e de tempo que a separam dos objetos. Dessa forma, garante vivências sensoriais, motoras, cognitivas e afetivas.
Lorenzini (2007) reforça que a brincadeira é um ato fornecedor de experiências necessárias para o pleno desenvolvimento de uma criança. Essa plenitude abrange aspectos sensoriais, motores, perceptuais, cognitivos, afetivos e culturais. Como refere Winnicott (1975), a brincadeira é universal e é própria da saúde, pois facilita o crescimento, propicia relacionamentos grupais e diferentes formas de comunicação.

O brincar da criança com PC

A criança com PC usualmente apresenta dificuldades na evolução do brincar porque é privada das experiências necessárias para o seu desenvolvimento sensório-motor. Tal privação é justificada pelas sequelas motoras à lesão cerebral e também é reforçada por fatores ambientais e culturais. Por um lado, a lesão neurológica pode atingir o equilíbrio, a mecânica e a coordenação dos movimentos que atrapalham a adaptação postural e a movimentação voluntária que, por sua vez, limitam a autoexploração da criança e a exploração do ambiente. Por outro, os prejuízos no vínculo da criança com PC e sua família também podem propiciar limitações nas vivências necessárias, ou seja, há possibilidades de enfraquecimento do laço entre a criança e sua mãe, por exemplo, devido à ausência inicial de respostas da criança (LORENZINI, 2007).
Exemplificando, a mãe naturalmente estimula o bebê brincando, por meio de balbucios, sorrisos, expressões faciais e/ou corporais. O bebê portador de paralisia cerebral responde pouco. Com o tempo, ela tende a brincar menos com seu filho, o que causa prejuízos no vínculo entre mãe e criança. (LORENZINI, 2007, p. 35)
De acordo com Winnicott (1975), as relações afetivas estabelecidas entre a criança e sua mãe influenciam o envolvimento posterior da criança com o brincar. Consoante a este autor, Lorenzini (2007) refere que a interação da criança com o cuidador é de extrema importância para seu desenvolvimento. Em se tratando de uma criança com PC, a falta dessa interação adicionada às limitações decorrentes da lesão cerebral são fatores desfavoráveis para a sua evolução.
Vieira, Carvalho e Martins (2009) referem que todo o estímulo recebido pela criança é propiciador de motivação e da ação em si. Dessa forma, como afirma Lorenzini (2007), o ambiente em que a criança com PC vive reflete-se nesse processo, ou seja, “se a criança não brinca e não participa da vida familiar, a inatividade pode reforçar aquelas alterações” (p.35). 
Outro aspecto importante, apontado por Lorenzini (2007), cuja ocorrência interfere no desenvolvimento da criança com PC, é a persistência de alguns reflexos primitivos, entre eles, o reflexo tônico cerebral assimétrico (RTCA), que atrapalha ações como levar a mão e objetos à boca e à linha média, manipular objetos com as duas mãos. Até mesmo a simples brincadeira de sugar os dedos pode estar prejudicada devido à fixação da cintura escapular, que dificulta a movimentação dos braços à frente e à boca, influenciando de forma negativa a descoberta de suas mãos e a futura coordenação óculo-manual que, por sua vez, estando deficitária, impedirá movimentos dos braços e das mãos em direção aos objetos e sua manipulação.
Em virtude da inadequação dos movimentos padrões posturais que fogem daqueles considerados normais, a criança portadora de paralisia cerebral vivencia pouco as situações próprias do mundo infantil, isto é, o brincar. Assim, sua criatividade e seu espaço de exploração ficam cada vez mais limitados. A falta dessa participação, por outro lado, aumenta mais ainda aquela inadequação, tornando-se um ciclo vicioso (LORENZINI, 2007, p.119).
Cordazzo e Vieira (2007) ressaltam a brincadeira como a principal atividade da infância, devido à sua influência no desenvolvimento global da criança.  Nesse sentido, a criança com PC é bastante prejudicada, uma vez que, a não ser que as sequelas sejam leves, como refere Lorenzini (2007), suas experiências sensório-motoras são restritas.  Essa restrição não lhe permite movimentos corporais como o simples colocar a mão na boca, a exploração do próprio corpo e do ambiente, o rolar, o sentar e o andar, comprometendo, assim, o esquema corporal como um todo.
Helfer, Oliveir e Miosso (2005) realizaram um estudo, a partir de investigação, junto a doze crianças com PC, estudantes de uma escola especial. Detectaram que a maioria das crianças com PC, participantes do estudo, tiveram pouca estimulação da família no que se refere às atividades lúdicas. As autoras relacionaram tal fato ao desconhecimento da família e aos problemas afetivos dela, ocasionando atrasos e maiores dificuldades à aprendizagem de filhos com PC.
Em estudo de crianças com PC e suas mãe no ato de brincar, Lorenzini (2007) verificou diferença entre “estimular brincando e brincar para estimular”.  Na situação de estimular brincando, tenta-se despertar o interesse da criança com um brinquedo ou uma brincadeira, enquanto ao brincar para se estimular há tentativa de suprir suas necessidades, colocando seus interesses em primeiro lugar.  A mesma autora refere também que o importante neste processo é a brincadeira (ato de brincar) e não o brinquedo (objeto) e que não se deve ficar preso a um material específico, uma vez que o ambiente é rico e repleto de oportunidades de substituição. O que importa é a brincadeira, mesmo simples, ela fica na memória da maioria das pessoas e assume a função de agente catalisador do desenvolvimento infantil.
A brincadeira permite resgatar o elemento cultural que envolve os aspectos motor, sensorial, cognitivo, social e afetivo, assim como possibilita a interação mãe e filho, ao mesmo tempo em que torna a criança sujeito da sua história (LORENZINI, 2007, p. 123).
O ato de brincar é ação indispensável e fundamental a qualquer criança, principalmente a crianças com deficiências, uma vez que é  fonte rica de estímulos que devem ser investimentos constantes na rotina dessas crianças, seja no âmbito familiar, escolar ou social (CORRÊA; STAUFFER, 2008).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:  
Pasqualeto, Viviane Medeiros
A linguagem sem fala: avaliação da linguagem de crianças com paralisia cerebral e sem oralidade / Viviane Medeiros Pasqualeto. – 2010.

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