Ao iniciar as reflexões sobre o ato de brincar, devemos enfocar
as palavras do estudioso Eugenio Tadeu Pereira que o faz de forma muito
detalhada ao relatar uma experiência sua, em que evidencia a naturalidade do brincar.
Fazia calor. O ônibus chacoalhava e ‘barulhava’. Uns amigos
e eu voltávamos de um passeio no parque Xochimilco, na Cidade do México. Nossas
mãos estavam abarrotadas de brinquedos que compramos nas pequenas lojas de
artesanato. Éramos curiosos e pesquisadores do brinquedo. Comigo também estava
um cavalinho de pau. No ônibus, à minha frente, do lado direito, uma criança,
miúda e morena, no colo da mãe me espiava fortuitamente com um olhar sério.
Olhei-a, pisquei os olhos, fiz ligeiras e tênues caretas. Ela continuava do
mesmo jeito. Lembrei-me, então, do cavalinho em minhas mãos. Ao som de ‘toc
toc, toc toc, toc toc...’, aproximava e afastava o cavalinho da criança. Às
vezes, escondia-o atrás do banco. Os olhos do menino começaram, aos poucos, a
mostrar um brilho diferente e, nesse embalo, pude vê-lo abrindo o rosto,
sorrindo e aceitando o convite para a brincadeira. Entrara no jogo, ora se
escondendo no colo da mãe, ora reaparecendo, chamando o cavalinho e olhando
para mim. Aos poucos, dos tímidos sorrisos, passou a deliciosas gargalhadas. Na
esfera do imaginário, naquele pequeno universo de relação, dois seres se
encontraram por intermédio de um brinquedo. Por uns quinze minutos ficamos mergulhados
nesse diálogo simbólico (PEREIRA, 2009, p. 17)
O autor (2009) complementa seu relato afirmando que durante esse
encontro não houve falas, apenas movimentos e gestos sonoros, que sinalizavam a
intencionalidade daquele momento – um adulto e uma criança, dois seres de
universos diferentes com uma linguagem explícita além das palavras, linguagem
esta que transcorre por toda a experiência de vida. Para eler, o brincar é um
ato de descobertas, indagações, escolhas e recriações, é uma das formas mais ricas
que a criança possui para se relacionar com o mundo, apreendê-lo e
compreendê-lo, enfim, para se expressar.
Nessa perspectiva, Vorcaro (2006) destaca que o brincar é a
prática da linguagem na íntegra, pois a criança produz um discurso lúdico e
motor ao qual incorpora sentidos e lugares, muito antes de completar sua
aquisição de linguagem ou, até mesmo, antes de falar seu próprio nome.
Valorizando a expressividade do brincar, Pereira (2009) salienta a diferença
entre o brincar como forma de expressão e o brincar como ferramenta. Ao se utilizar
o ato apenas como ferramenta há privação de possibilidades para a criança,
enquanto, se utilizado como forma de expressão, oportuniza-se à criança o
exercício de reelaborar uma dada realidade com novos significados, formando sua
identidade e tornando-a presente no mundo com sua individualidade e como
participante de um grupo social.
Vieira, Carvalho e Martins (2009), na tentativa de definir o
brincar, transcorrem, em contextos diferentes, sobre essa ação, desde “a brincadeira
de um cachorrinho que corre atrás da bola, até aquela na qual experientes
jogadores de xadrez disputam uma partida” (p.30), e em termos utilizados como
sinônimos – brincar, jogar, brincadeira, atividade lúdica.
Brougère (1998), citado por Wajskop (1995), afirma que o termo jogo possui
três diferentes possibilidades de significados: situação de jogo de competição
entre pessoas (por exemplo, o futebol), atividades ou jogos com regras
(amarelinha, por exemplo) e ainda, como material que compõe um jogo. Conforme
Wajskop (1995), numa perspectiva sociocultural, o brincar pode ser definido
como uma forma de a criança interpretar e assimilar o mundo, os objetos, a
cultura, as relações e os laços afetivos. Seguindo com raciocínio da mesma
autora, o brincar é uma atividade social infantil, na qual a criança pensa e
vivencia situações novas ou cotidianas, isenta de pressões situacionais.
Piaget (1971) classifica o ato de jogar em exercício, símbolos e
regras, baseando-se nas três fases de desenvolvimento cognitivo. O exercício é
representado pela repetição de gestos simples, atividades exploratórias e
movimentos do próprio corpo – jogos de exercício sensório-motor. A fase do simbólico
compreende a faixa entre dois e seis anos, quando a tendência da criança é a
ficção ou fantasia. O jogo de regras inicia-se por volta dos cinco anos, mas se
desenvolve na fase entre sete e doze anos, mantendo-se por toda a vida do ser
humano. Ele se caracteriza pelo uso sistemático de regras estabelecidas pelo
grupo.
Vygotsky (2007) aponta ganhos sociais, cognitivos e afetivos para
a criança que exerce o brincar, afirmando que a brincadeira oportuniza a
chamada zona de desenvolvimento proximal no desenvolvimento infantil. A zona de
desenvolvimento proximal é a denominação dada por Vygotsky para a distância
entre o nível de desenvolvimento atual e o nível de desenvolvimento potencial.
O nível de desenvolvimento atual pode ser exemplificado como a capacidade de
resolver um problema de forma independente, enquanto o nível de desenvolvimento
potencial, pela resolução de um problema com o auxílio de um interlocutor mais
experiente.
Para Vygotsky (2007), o brincar não é apenas uma fonte de prazer
à criança, até porque algumas brincadeiras, como jogos e competições, causam
desprazer e até sofrimento a elas. O ato de brincar é também interação e propicia
a construção de aprendizagem através da troca mútua e da evolução imaginária da
criança.
Definir o brinquedo como uma atividade que dá prazer à
criança é incorreto por duas razões. Primeiro, muitas atividades dão à criança
experiências de prazer muito mais intensas do que o brinquedo, como, por
exemplo, chupar chupeta, mesmo que a criança não se sacie. E, segundo, existem
jogos nos quais a própria atividade não é agradável, como, por exemplo,
predominantemente no fim da idade pré-escolar, jogos só dão prazer à criança se
ela considera o resultado interessante (VYGOTSKY, 2007, p. 107).
Na perspectiva Vygotskyana, o ato de brincar não é natural e sim
socialmente construído, evidenciando o valor fundamental das vivências sociais
e culturais relacionadas à aprendizagem.
A situação imaginária de qualquer forma de brinquedo já
contém regras de comportamento, embora possa não ser um jogo com regras formais
estabelecidas a priori. A criança
imagina-se como mãe e a boneca como criança e, dessa forma, deve obedecer às
regras do comportamento maternal (VYGOTSKY, 2007, p. 110).
Durante a brincadeira, as crianças podem vivenciar desafios que
extrapolam seu cotidiano natural, possibilitando, assim, a criação de hipótese
na ânsia de entender ou resolver os problemas propostos. Ao brincar em grupo,
as crianças podem construir laços reais entre si e, ao mesmo tempo, elaborar
regras de organização e de convivência, o que transforma a brincadeira em um
privilegiado local de interação e conflito de distintas crianças e suas
diferentes opiniões (MOYLES, 2002; WAJSKOP, 1995).
Às vezes, o brincar de faz de conta, especialmente
envolvendo o uso da linguagem para explorar os conceitos e imagens criados
dentro da criança, pode ajudá-la a aprender alguma coisa sem experienciá-la por
si mesma, por exemplo, que o fogo queima. Transformar a casinha na Casa dos
Três Ursinhos pode ajudar as crianças a sentir como é estar assustado e
sozinho, e proporciona ricas oportunidades de linguagem comparativa (MOYLES,
2002, p. 62).
Wajskop (1995) estabeleceu características do brincar assim evidenciadas:
·
Enredo ou situação imaginária - as crianças
brincam, interagem e se comunicam a partir de um enredo ou situação imaginária,
identificados através de verbalizações ou sinais e gestos corporais
relacionados à brincadeira.
·
Fantasia e representação de papéis – atribuem a
si próprias e aos outros, inclusive bonecos ou objetos, representações diversas
como se fossem um adulto, um animal, etc.
·
Simbolismo – substituem objetos atribuindo-lhes
significados diferentes do convencional.
·
Regras – elaboram normas presentes e respeitadas
em toda a brincadeira.
·
Interação e negociação – a interação permite a
negociação, a qual possibilita atribuições de significados às ações, aos
objetos e aos personagens que participam da brincadeira.
·
Decisões – o que, onde, com o que, com quem e
por quanto tempo são as decisões que as crianças fazem no momento do brincar.
·
Desprovimento – não há finalidades e objetivos
explícitos
Finnie (1980) refere que o ato de brincar propicia à criança o
conhecimento de si própria e do mundo que a rodeia. Ele faz parte do processo
natural de desenvolvimento, pois é brincando que a criança, por exemplo,
descobre suas mãos e aprende a utilizá-las, é brincando que a criança experiencia
outras partes do seu corpo, distingue diferenças entre formas e texturas de
objetos levando-os à boca e manipulando-os. Ao se deslocar de um lado para o
outro, engatinhando, por exemplo, a criança adquire noções de distância e de tempo
que a separam dos objetos. Dessa forma, garante vivências sensoriais, motoras,
cognitivas e afetivas.
Lorenzini (2007) reforça que a brincadeira é um ato fornecedor de
experiências necessárias para o pleno desenvolvimento de uma criança. Essa
plenitude abrange aspectos sensoriais, motores, perceptuais, cognitivos,
afetivos e culturais. Como refere Winnicott (1975), a brincadeira é universal e
é própria da saúde, pois facilita o crescimento, propicia relacionamentos
grupais e diferentes formas de comunicação.
O brincar da criança com PC
A criança com PC usualmente apresenta dificuldades na evolução do
brincar porque é privada das experiências necessárias para o seu
desenvolvimento sensório-motor. Tal privação é justificada pelas sequelas
motoras à lesão cerebral e também é reforçada por fatores ambientais e
culturais. Por um lado, a lesão neurológica pode atingir o equilíbrio, a
mecânica e a coordenação dos movimentos que atrapalham a adaptação postural e a
movimentação voluntária que, por sua vez, limitam a autoexploração da criança e
a exploração do ambiente. Por outro, os prejuízos no vínculo da criança com PC
e sua família também podem propiciar limitações nas vivências necessárias, ou
seja, há possibilidades de enfraquecimento do laço entre a criança e sua mãe,
por exemplo, devido à ausência inicial de respostas da criança (LORENZINI, 2007).
Exemplificando, a mãe naturalmente estimula o bebê
brincando, por meio de balbucios, sorrisos, expressões faciais e/ou corporais.
O bebê portador de paralisia cerebral responde pouco. Com o tempo, ela tende a
brincar menos com seu filho, o que causa prejuízos no vínculo entre mãe e
criança. (LORENZINI, 2007, p. 35)
De acordo com Winnicott (1975), as relações afetivas
estabelecidas entre a criança e sua mãe influenciam o envolvimento posterior da
criança com o brincar. Consoante a este autor, Lorenzini (2007) refere que a
interação da criança com o cuidador é de extrema importância para seu
desenvolvimento. Em se tratando de uma criança com PC, a falta dessa interação
adicionada às limitações decorrentes da lesão cerebral são fatores
desfavoráveis para a sua evolução.
Vieira, Carvalho e Martins (2009) referem que todo o estímulo
recebido pela criança é propiciador de motivação e da ação em si. Dessa forma, como
afirma Lorenzini (2007), o ambiente em que a criança com PC vive reflete-se
nesse processo, ou seja, “se a criança não brinca e não participa da vida
familiar, a inatividade pode reforçar aquelas alterações” (p.35).
Outro aspecto importante, apontado por Lorenzini (2007), cuja
ocorrência interfere no desenvolvimento da criança com PC, é a persistência de
alguns reflexos primitivos, entre eles, o reflexo tônico cerebral assimétrico
(RTCA), que atrapalha ações como levar a mão e objetos à boca e à linha média,
manipular objetos com as duas mãos. Até mesmo a simples brincadeira de sugar os
dedos pode estar prejudicada devido à fixação da cintura escapular, que dificulta
a movimentação dos braços à frente e à boca, influenciando de forma negativa a
descoberta de suas mãos e a futura coordenação óculo-manual que, por sua vez,
estando deficitária, impedirá movimentos dos braços e das mãos em direção aos
objetos e sua manipulação.
Em virtude da inadequação dos movimentos padrões posturais
que fogem daqueles considerados normais, a criança portadora de paralisia
cerebral vivencia pouco as situações próprias do mundo infantil, isto é, o
brincar. Assim, sua criatividade e seu espaço de exploração ficam cada vez mais
limitados. A falta dessa participação, por outro lado, aumenta mais ainda
aquela inadequação, tornando-se um ciclo vicioso (LORENZINI, 2007, p.119).
Cordazzo e Vieira (2007) ressaltam a brincadeira como a principal
atividade da infância, devido à sua influência no desenvolvimento global da
criança. Nesse sentido, a criança com PC
é bastante prejudicada, uma vez que, a não ser que as sequelas sejam leves,
como refere Lorenzini (2007), suas experiências sensório-motoras são
restritas. Essa restrição não lhe
permite movimentos corporais como o simples colocar a mão na boca, a exploração
do próprio corpo e do ambiente, o rolar, o sentar e o andar, comprometendo,
assim, o esquema corporal como um todo.
Helfer, Oliveir e Miosso (2005) realizaram um estudo, a partir de
investigação, junto a doze crianças com PC, estudantes de uma escola especial. Detectaram que a maioria das crianças com PC, participantes
do estudo, tiveram pouca estimulação da família no que se refere às atividades
lúdicas. As autoras relacionaram tal fato ao desconhecimento da família e aos
problemas afetivos dela, ocasionando atrasos e maiores dificuldades à
aprendizagem de filhos com PC.
Em estudo de crianças com PC e suas mãe no ato de brincar,
Lorenzini (2007) verificou diferença entre “estimular
brincando e brincar para estimular”. Na situação de estimular brincando, tenta-se despertar o interesse da criança com
um brinquedo ou uma brincadeira, enquanto ao
brincar para se estimular há
tentativa de suprir suas necessidades, colocando seus interesses em primeiro
lugar. A mesma autora refere também que
o importante neste processo é a brincadeira (ato de brincar) e não o brinquedo
(objeto) e que não se deve ficar preso a um material específico, uma vez que o
ambiente é rico e repleto de oportunidades de substituição. O que importa é a
brincadeira, mesmo simples, ela fica na memória da maioria das pessoas e assume
a função de agente catalisador do desenvolvimento infantil.
A brincadeira permite resgatar o elemento cultural que
envolve os aspectos motor, sensorial, cognitivo, social e afetivo, assim como
possibilita a interação mãe e filho, ao mesmo tempo em que torna a criança
sujeito da sua história (LORENZINI, 2007, p. 123).
O ato de brincar é ação indispensável e fundamental a qualquer
criança, principalmente a crianças com deficiências, uma vez que é fonte rica de estímulos que devem ser investimentos
constantes na rotina dessas crianças, seja no âmbito familiar, escolar ou
social (CORRÊA; STAUFFER, 2008).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Pasqualeto,
Viviane Medeiros
A linguagem sem fala: avaliação da linguagem de
crianças com paralisia cerebral e sem oralidade / Viviane Medeiros Pasqualeto.
– 2010.
VER TEXTO COMPLETO EM: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.do?select_action=&co_autor=142915
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